Elites escolares e Capital cultural

Zaia Brandão e Maria Elena Martinez

           O SOCED - Grupo de Pesquisas em Sociologia da Educação da PUC-Rio - vem investigando desde 2002 processos de escolarização em colégios que atendem setores das elites cariocas1 . Articulando abordagens macro e micro-sociais, produziu um material empírico com o qual foi possível esboçar um perfil cultural de alunos, pais e professores dessas escolas. A análise, ainda que em fase preliminar, desse material já permite inferir algumas características de gestão escolar, clima institucional e das condições do trabalho docente que poderão vir a subsidiar políticas educacionais na perspectiva da melhoria da qualidade do ensino.

        As respostas ao survey do SOCED (composto de três questionários: alunos, famílias e professores) em nove escolas de prestígio no Rio de Janeiro indicam, entre outros aspectos, a incorporação, em dosagens cada vez maiores, de elementos da cultura de consumo, que embora abrangente, distancia-se da lógica da cultura de massa das primeiras décadas da segunda metade do século XX, a medida em que responde às características de fragmentação dos públicos aos quais se dirige, garantindo as distâncias entre padrões e estilos de vida dos segmentos superiores das hierarquias sociais e aqueles próprios a segmentos das camadas populares. Assim, entre a família e a escola existe um conjunto complexo de dispositivos mediadores, entre eles as novas tecnologías de comunicação e informação, que fazem possível ao jovem o acesso simultâneo a distintos mundos possíveis. Examinar as posições e atitudes das famílias e as escolas perante os desafios que o sistema comunicativo impõe, significa compreender o surgimento de outra cultura, entendida como outras maneiras de ver e de ler, de perceber e de representar (Martín-Barbero, 1998).

        Nosso objetivo neste texto é analisar a congruência e o suporte do capital cultural das elites escolares às exigências de escolarização das “escolas de prestígio”.

Os sujeitos investigados

        A pesquisa do SOCED investigou escolas que são consideradas, pelos rankings anualmente divulgados pela imprensa carioca, como das melhores instituições educativas do Rio de Janeiro: duas delas confessionais, duas bilíngües, duas alternativas2 , duas públicas e uma escola judaica.

        Com exceção de duas escolas - uma das instituições públicas e uma das escolas alternativas – as escolas investigadas apresentam instalações amplas, quadras de esporte, laboratórios, bibliotecas, e são normalmente bem cuidadas. Um dado chama a atenção: o esquema de segurança com que as instituições escolares cercam a entrada e saída dos alunos. Apesar da discrição 3 com que estes esquemas funcionam, pudemos constatar um controle bastante profissional e intenso em duas das escolas investigadas: exatamente naquelas em que, os dados desagregados por escola indicaram níveis mais elevados de renda familiar.

        Os três questionários contextuais do nosso survey permitiram produzir um conjunto de informações a partir das quais esboçamos um perfil dos principais agentes educacionais e das práticas pedagógicas com que essas escolas produzem a imagem de excelência escolar. Origem familiar, práticas culturais, hábitos e condições de estudo, lazeres e consumos culturais foram alguns dos dados com que desenhamos estes perfis. Os instrumentos foram aplicados em 850 alunos em 31 turmas das 8ª séries do ensino fundamental (na faixa dos 14-15 anos), 397 pais e 144 professores.

Características das famílias

   [...] o contexto, este é também “fabricado” pela reunião dos indivíduos, uma vez que são as características sociais e escolares dos alunos que, em interação com os docentes, contribuem para compor um ambiente de qualidade desigual. Os contextos são os colegas com que se encontram, o “recurso” que eles constituem, o clima que deles decorre nos estabelecimentos e nas classes[...] (Duru-Bellat, 2005, p.25).

           A análise dos dados comprovou que o capital escolar dessas famílias, como a tabela a seguir indica, é bastante elevado. A importância deste capital fica ainda mais destacada, pois além dos baixos índices de escolarização no Brasil, o nosso sistema de ensino fundamental bastante precário4 .



        Tabela 1: Nível de escolaridade dos pais
Curso de mais alta titulação
  Pai
  Mãe
Ensino médio
13%
11%
Ensino superior
47%
51%
Especialização (mínimo de 360h)
20%
22%
Mestrado
12%
11%
Doutorado
7%
5%



        Se levarmos em conta as duas escolas públicas que fazem parte do grupo de escolas investigadas, e que estas escolas têm como clientela um razoável contingente de jovens procedentes de frações das camadas populares, os percentuais de pais e mães com menor escolaridade (nível médio) são bem reduzidos: 87% dos pais e 89% das mães têm escolaridade de nível superior. Destes, 39% dos pais e 38% das mães cursaram a pós-graduação. Cabe destacar que a maioria dos questionários (74%) foi preenchida pelas mães, o que permite inferir que as mulheres, no esquema familiar das famílias desses alunos, continuam sendo as principais responsáveis pelas questões relacionadas à escola5 , e que estes níveis de escolaridade das mães são um fator a mais jogando a favor da qualidade da escolarização desses jovens6 .

        Das famílias investigadas, 80% moram em domicilio próprio pago, em aquisição ou obtido por herança. Apenas uma minoria mora em domicílio alugado (15%) ou cedido (5%). Esse é mais um dado que distingue essas famílias em relação à maioria da população, pois a casa própria é não só uma vantagem econômica, mas também, nos bairros em que mora a maioria dos jovens investigados, um símbolo de status social.



Tabela 2: Distribuição da renda familiar bruta
Renda Mensal Bruta
Porcentagem
Até R$ 2.000,00
7,5%
Entre R$ 2.001,00 e R$ 5.000,00
27%
Entre R$ 5.001,00 e R$ 8.000,00
23%
Entre R$ 8.001,00 e R$ 12.000,00
20,5%
Entre R$ 12.001,00 e R$ 16.000,00
9,5%
Acima de R$ 16.000,00
12,5%



        A distribuição da renda mensal bruta, conforme a tabela acima, indica que a maioria das famílias encontram-se nas faixas salariais mais elevadas, ou seja, acima dos 20 salários mínimos, faixa em que se situam apenas 6% da população brasileira. Em um país no qual o salário mínimo é de R$ 300,00 mensais7 o grupo investigado com 22% de famílias com renda mensal acima de R$ 12.000,00 agrega uma boa parcela de representantes da elite econômica carioca.

        Esses níveis de renda familiar permitem que 42,5% tenham um empregado doméstico trabalhando todos os dias úteis, e que 12,5% tenham de dois a quatro empregados na mesma situação, indicando estilos de vida doméstica e padrões de consumo muito elevados, mesmo se cotejados às elites de outros países. Se a esses indicadores de padrões de vida associarmos os dados referentes ao tamanho da prole (tabela 3), fica evidente a condição privilegiada desses setores no que se refere aos investimentos na educação dos filhos. Os sujeitos investigados, desse ponto de vista, se aproximam das características sócio-demográficas dos países capitalistas centrais e, por contraste, se distanciam das camadas populares do Brasil.

Tabela 3: Distribuição do número de filhos
Número de filhos
Porcentagem
1
28,5%
2
50%
3
18%
4
3,5%



        Outros dados sobre padrões de consumo indicam um acesso generalizado dessas famílias à tecnologia digital e bens de consumo doméstico pouco usuais para grande parte da população brasileira, inclusive no que se refere à quantidade de aparelhos eletro-eletrônicos disponíveis na residência.

        A maioria dos alunos investigados tem um quarto próprio e nele dispõe de computador pessoal, televisão e aparelho de som. Portanto, no contexto familiar, esses jovens contam com um local apropriado para o estudo, acesso a equipamentos eletro-eletrônicos variados, bem como condições de acesso a atividades de lazer e consumos culturais inacessíveis à maioria dos jovens brasileiros. No Brasil, apenas 6,7% das residências possuem computadores8 , mas entre os alunos que responderam o survey 60,7% possuem computador dentro do quarto.

        O conjunto das características descritas acima vêm potencializar as condições desses agentes de recriarem novos padrões de distinção seja pelo estilo de vida, seja pelas práticas de lazer e consumo que as condições econômico-financeiras lhes proporcionam.

Recriando cenários distintivos: a força do capital informacional
  

   O crescimento do ecletismo dos gostos e das práticas das classes superiores e a segmentação do meio cultural das classes populares constituem as duas faces de uma mesma realidade, a saber, a dificuldade crescente a equiparar os grupos sociais com repertórios de práticas e de preferências unificadas e homogêneas, no momento mesmo em que as desigualdades econômicas entre estes grupos vão, sobretudo se reforçando. Esta desunificação das culturas de classe, em um contexto de desigualdades crescentes, manifesta a importância específica e muitas vezes negligenciada dos parâmetros puramente econômicos da estratificação social dos estilos de vida. (Coulangeon, 2004, p.76)9

           Uma das dimensões mais relevantes na caracterização do grupo estudado, no campo das práticas culturais, é o acesso à informação. A qualidade da vida social nos espaços urbanos, crescentemente complexos das grandes metrópoles – como o Rio de Janeiro – demanda um tipo de conhecimento permanentemente atualizado que articule o nível local aos cenários mundiais/globais. Por outro lado, essa articulação se faz necessária para poder compreender e significar o cotidiano, assim como para desenvolver estratégias a partir da antecipação de cenários futuros de curto prazo.

        Essa possibilidade no mundo contemporâneo, no entanto, não é democraticamente distribuída, pois é fortemente condicionada pelas condições sócio-econômicas. Está ligada ao uso de novas tecnologias de informação, consideradas não só como um simples meio – pois produzem, armazenam e transmitem o capital-informação – mas como vias de escoamento e orientação do fluxo de trocas materiais e simbólicas. Dessa forma,

   [...] o capital-informação tende a dividir os homens e mulheres em ricos e pobres em informação, em aqueles que geram valor-informação para o capital e aqueles excluídos do processo de geração, registro, comunicação e consumo de informação-valor. Sociedades que não desenvolvem tecnologias da informação, com todas as relações e agenciamentos sociais nelas envolvidos, tendem não somente a ser sub-informadas em relação aos países capitalistas centrais, como também a erigir, dentro de suas fronteiras, divisões ainda mais fundas entre suas minorias um tanto ricamente informadas e suas grandes maiorias pobremente informadas (Dantas, 2002, p.198).

  No Brasil, as classes médias e altas, razoavelmente supridas de serviços básicos, passam a demandar, conforme esse autor, serviços interativos que lhes dêem acesso a novos padrões e comportamentos de consumo e entretenimento (televisão por assinatura, compras on line, Internet etc.), geralmente agenciados a partir dos Estados Unidos. A concentração de grandes corporações no gerenciamento de jornais, revistas, editoras de livros, TV aberta ou paga e Internet têm conseqüências importantes sobre os gostos e padrões de consumo dos diferentes estratos da população:

  As filiais das corporações-redes, bem como as unidades industriais ou financeiras locais nelas articuladas, precisam integrar-se completamente aos sistemas de processamento e transporte de informação das matrizes. Particularmente, no caso do Brasil, pelo menos duas grandes corporações de comunicação social – Globo e Abril –, além de outros grupos industriais e financeiros (Votorantim, Bradesco, Odebrecht etc.), esforçam-se para constituir subfragmentos informacionais locais, articulados aos grandes fragmentos globalizados (Dantas, 2002, p.235).

          Cabe destacar que o capital-informação,  analisado por Dantas (2002), gera valor-informação com importantes desdobramentos no plano material, podendo ser convertido em capitais econômico e social. Sobre a especificidade do capital cultural do grupo estudado, consideramos que o capital-informação é capital informacional com propriedades de insumo cultural, funcionando, portanto como uma dimensão da estrutura do capital cultural10 . Desse modo, o capital informacional não só define os novos modos de produção e o fluxo dos capitais, como também as formas de vida dos grupos e das famílias.

        O acúmulo do capital informacional evidencia-se por meio da leitura de revistas informativas: 79% dos pais lêem as revistas semanais de maior circulação no país (Veja, Isto é, Época) e, destes, 34,4% lêem uma, 24,7% duas e 20% três ou mais. Dentre os 96% que lêem regularmente jornais, 37,6% lêem pelo menos um, 30% dois e 28,6% três ou mais. Esses dados os colocam em uma posição de potenciais disseminadores de opinião no contexto da população brasileira. Os baixos índices de escolaridade no Brasil11 , apesar de os esforços da última década de expansão da rede pública de ensino, comprovam o diferencial do grupo estudado, uma vez que hábitos regulares de leitura implicam em padrões e níveis de escolaridade elevados .

As práticas culturais dos alunos

        O padrão de capital informacional dos pais reproduz-se entre a prole, visto que cerca de 34,5% dos alunos lêem jornais e/ou revistas e mais de 45,5% realizam a leitura semanal das revistas informativas anteriormente citadas. Ainda em relação aos hábitos de leitura, constatamos que mais de 67% utilizam a Internet com freqüência, ou seja, desenvolvem uma prática de leitura cada vez mais disseminada entre os jovens brasileiros desse grupo12 .

        Em recente levantamento sobre as práticas culturais dos franceses, Olivier Donnat (2003)13 ressaltou os gostos e os usos do tempo livre, assim como a variedade dos modos de apropriação das obras e dos produtos culturais é marcada por uma complexidade de fatores. O autor ressalta ainda que, para além da herança cultural, as práticas culturais podem ser adquiridas à margem do seio familiar e até mesmo em reação a ele; assim, os jovens tanto podem reproduzir os gostos familiares, como os recusar. De fato o que mais freqüentemente encontramos são combinações da herança (ou recusa dela) com outras influências, entre as quais o grupo de pares parece ter uma presença importante. Essa plasticidade dos gostos seria, portanto responsável pelas mudanças nos padrões das práticas culturais através das gerações.

        Em um texto recente, analisando as formas de transmissão das “paixões culturais”14 no contexto francês, o mesmo autor indica que os pais são majoritariamente a fonte dessas paixões.

  O fato de que as jovens gerações sejam duas vezes mais numerosas a receber uma paixão no domínio da arte e da cultura - e que dois terços dos parentes que as transmitiram não tenham, eles mesmos, a recebido - dá a medida da difusão do “desejo” de cultura, notadamente no domínio musical, assim como da profunda renovação das condições de sua transmissão. Mas ao mesmo tempo é necessário reconhecer que a cultura continua, em relação aos outros domínios de tempo livre, um lugar onde os mecanismos de reprodução funcionam com maior eficácia e onde as desigualdades,medidas ao início do nível de estudos ou pela origem social, permanecem fortes (Grifos nossos) (Donnat, 2004).

          As práticas culturais dos estudantes estudados pelo SOCED indicam resultados bastante consistentes com essas observações de Donnat (2004): os filhos parecem seguir e ampliar15 as experiências dos pais.

        Em relação à leitura desses jovens, apuramos, ainda, que 54% afirmou que adoram ir a livrarias e 38,4% indicaram a leitura como uma de suas atividades prediletas16 . Notamos, também, que o gênero preferido dos alunos é a ficção (69%). Na pergunta sobre quais os livros que eles tinham lido e mais gostado nos últimos dois anos, 87% lembraram-se de três livros, 8% indicou dois e 2% um livro (3% deixaram a questão em branco). Em um país de poucos leitores e se levarmos em consideração a faixa etária destes estudantes (13/14 anos) certamente este grupo de jovens distingue-se por ter a literatura entre o elenco de suas práticas sociais/culturais.

        Entre os livros mais citados temos os da coleção Harry Potter (citados 209 vezes) Capitães de Areia (80 citações), O Senhor dos Anéis (69 vezes), A Ilíada (62 vezes), A Odisséia (40 vezes) e O Guarani (32 vezes). Estas referências dos jovens estudantes indicam a força da mídia e da própria escola no desenvolvimento das motivações de leitura, para além das influências familiares.17

        Quanto aos programas de televisão assistidos, 95% dos pais destacaram jornais e noticiários. As freqüências relativas aos outros programas são: filmes e/ou seriados (78%), documentários (75%), esportes (55%), shows/musicais (53,5%) e telenovelas (48%) humorísticos (37,5%)18 . Os programas de auditório tiveram baixa expressão (11%). Essa hierarquia evidenciada na proporção das preferências expressa fortemente a importância conferida às informações/atualização por estes agentes.

        O grupo de pais que respondeu ao questionário afirmou freqüentar regularmente shoppings e restaurantes. Livrarias, cinemas e teatros, embora com representação mais baixa, também estão entre as práticas mais escolhidas. Fundamentando-se em Bourdieu (1979) e estudando setores das elites escolares do Rio de Janeiro, a expectativa da equipe de pesquisa era de uma maior freqüência às práticas culturais consideradas de ‘alta cultura’. No Brasil ainda persiste - sobretudo entre os setores médios da população onde domina a “boa vontade cultural” assinalada por Bourdieu – o imaginário que identifica a ‘alta’ cultura com os padrões da tradição européia, notadamente à francesa (percebendo como superiores práticas culturais tais como: museus, música erudita, literatura clássica etc.). Pudemos observar, no entanto, que os consumos culturais das frações de elites analisadas sofrem um processo de ‘americanização’19 . Nessa direção verificamos que os destinos das viagens para o exterior segue a seguinte distribuição: EUA e Canadá, Europa, América Latina .

         Vários autores, como Ortiz (2000), Garcia Canclini (2000), e Sarlo (2000), já haviam sinalizado uma alteração nos padrões de consumo cultural sob o impacto da mundialização da cultura. Garcia-Canclini (2000) assinalou a diminuição de freqüência a espaços públicos relacionados à oferta cultural clássica (livrarias, museus, salas de teatro, cinema e música), em conseqüência das características de complexificação da vida urbana – disponibilidade de tempo, dificuldades nos deslocamentos e medo da violência. No mesmo sentido, Ortiz (2000) argumentava que tanto a tradição como as artes não se configuram mais como padrões de legitimidade no novo contexto mundial globalizado. Nossos dados empíricos corroboram essas observações20 , pois o survey do SOCED indicou que:

  Já não são os valores ‘clássicos’ que organizam a vida cultural, mas, o que alguns autores chamam de ‘cultura das saídas’. A arte de viver não toma mais como referência à ‘alta cultura’, mas os tipos de ‘saídas’ realizadas pelos indivíduos – ir ao concerto de rock, a opera, aos restaurantes, ao cinema, ao teatro, viajar de férias. A oposição ‘cultura erudita’ x ‘cultura popular’ é substituída por outra: ‘os que saem muito’ versus ‘os que permanecem em casa’. [...] A mobilidade, característica da vida moderna, torna-se sinal de distinção21 (Ortiz, 2000, p.211).

          Entre as atividades culturais preferidas pela ampla maioria dos jovens investigados, destaca-se o cinema (86% afirmam freqüentá-lo mais de 4 vezes por ano e 10% de 3 a 4 vezes por ano, totalizando 96%). Em seguida, em ordem de freqüência vêm os eventos esportivos (58%22 ), os shows de música popular (51%) e o teatro (40,5%). Os dados obtidos sobre freqüência a museus e centros culturais são insuficientes para aquilatar o peso que essa prática tem na vida desses jovens. Verificamos, no entanto, uma baixa freqüência em relação aos eventos eruditos (ópera, ballet e concertos), visto que a opção “nunca freqüenta” foi assinalada por 57% dos respondentes.

Capital econômico na recriação das fronteiras culturais?

  A interação do culto com os gostos populares, com a estrutura industrial da produção e circulação de quase todos os bens simbólicos, com padrões empresariais de custo e eficácia, está mudando velozmente os dispositivos organizadores do que agora se entende por “ser culto” na modernidade (Canclini, 1998, p.63).

          As rápidas alterações do campo cultural, especialmente nas últimas décadas, aparecem claramente nos perfis destes grupos, exigindo a ampliação das referências teórico-empíricas da pesquisa, inicialmente muito marcadas pelos trabalhos de Bourdieu. Nestor García Canclini (2000), Renato Ortiz (2000) e Maria da Graça Setton (2004), entre nós, foram referências fundamentais para a interpretação das peculiaridades do campo cultural no Brasil e na América Latina. Entre os franceses, as contribuições de Donnat (2003, 2004) e Coulangeon (2004), mais recentemente, permitiram que aprofundássemos nossa reflexão sobre os novos contornos do capital cultural das elites estudadas, assim como para refletir sobre a questão dos novos padrões distintivos das elites. Coulangeon, em especial, foi um autor que encontramos quando este artigo já estava praticamente pronto, e que nos possibilitou articular melhor algumas pontes empírico-teóricas no que se refere às conversões de capitais e, muito especialmente, avaliar o significado atual dos aportes do capital econômico na recriação das distâncias sócio-culturais.

        García Canclini (1990)23 já assinalava, ao início da década de 90, que no Brasil e na América Latina não se poderia falar de uma estrutura de classe unificada – e muito menos de uma classe hegemônica, um equivalente local da burguesia dos estudos franceses – em condições de impor ao sistema inteiro sua própria matriz de significações. O desenvolvimento na América Latina teria sido marcado no plano econômico e simbólico por uma multiplicidade de pautas culturais, em conseqüência da permanente tensão entre a tradição patrimonialista e o impulso modernizador. O resultado teria sido um campo simbólico fragmentado, fortemente marcado pela heterogeneidade cultural que formaria um compósito simbólico e econômico com características bastante diferentes daquelas encontradas nos países capitalistas centrais. Mesmo quando a modernização econômica, a ampliação escolar e os sistemas de comunicação de massa procuram promover uma certa homogeneização, a coexistência de tradições culturais diversas, associadas à intensa criação e difusão de produtos culturais contemporâneos, produzem e reproduzem permanentemente a heteronomia no plano cultural.

        Os reflexos da globalização, sob o prisma da massificação cultural e práticas de consumo, entretanto, têm sido freqüentemente interpretados em seus desdobramentos homogeneizadores. Entretanto, para além da aparência aproximação das práticas culturais das diferentes camadas sociais, a exploração do nosso material da pesquisa, em diálogo com outros pesquisadores, permite indicar que, sob a capa da democratização dos gostos estéticos e das práticas sociais, novas formas de estratificação são reconstruídas, preservando a distância simbólica entre as elites e os setores da população que se situam nos patamares inferiores da estratificação social.

        Essa característica é assinalada para o contexto francês hoje:

  [...] algumas evidências empíricas impõem, em primeiro lugar, romper com a visão de uma classe dominante unificada pela veneração das obras de cultura erudita. Parece, de fato, que hoje em dia, o estilo de vida das classes superiores se caracterizam menos pela legitimidade cultural das preferências e dos hábitos do que pelo ecletismo dos gostos e das práticas (Grifos nossos) (Coulangeon, 2004, p.60).

        Cabe lembrar que o conceito de capital cultural, cunhado por Bourdieu, fundamentava-se na hipótese deste novo tipo de capital funcionar como uma espécie de retradução do capital econômico em hierarquias culturais, naquelas sociedades onde o poder e os privilégios não se traduziam mais pelas propriedades e títulos de nobreza. O capital cultural produzia assim um poder de distinção mais refinado, em virtude de sua dupla arbitrariedade: (1) o desconhecimento do caráter de classe das práticas culturais, e (2) o reconhecimento da cultura das elites, como a única legítima.

        As transformações do campo cultural entretanto, sobretudo nas últimas décadas do século XX, vêm alterando os padrões das práticas - culturais e sociais - que antes distinguiam aqueles grupos que se situavam nos níveis mais elevados das hierarquias sociais. Essas mudanças, segundo Coulangeon (2004),

  [...] fragilizam o modelo de a distinção, mas não o desqualificam [...] o ecletismo das classes superiores encarnam, de alguma maneira, a forma contemporânea de uma legitimidade cultural fundada sobre a tolerância estética e a transgressão das fronteiras entre as gerações, os grupos sociais ou as comunidades étnicas, em relação à qual a estratificação social das atitudes permanece muito acentuada (Grifos nossos) (op. cit. p.80).

        Este ecletismo também pode ser observado nos dados produzidos pelo nosso survey, o que nos levou a focalizar a estrutura interna do capital cultural dos grupos estudados. Cada vez mais torna-se necessário pensar em práticas culturais que, mais do que pelo conteúdos, se distinguem pelo estilo, intensidade e espaços físicos onde se realizam. É o caso, por exemplo, da freqüência a museus (no Brasil ou no exterior), do aprendizado de línguas estrangeiras (em cursos extra-curriculares ou em escolas bilíngües), dos títulos universitários (em universidades tradicionais ou nas recém criadas com a “democratização” universitária), do acesso às informações e ao mundo digitalizado (via escola e mídia ou através de viagens e dos incontáveis recursos presentes nos quartos e nas casas dos jovens estudados).

        A multiplicidade de recursos de ordem material, cultural, simbólica e econômica - indicada por uma boa parcela dos estudantes e pais que estudamos - oferecem condições muito particulares de ampliação do habitus, acrescendo-lhes condições de manter ou melhorar as posições de distinção relativa que ocupam nos campos sociais.

  A complexificação do habitus decorrente das possibilidades de circulação dos agentes por vários campos, hipotéticamente oferece maiores condições da sua diversificação estrutural, assim como de aumento do volume total do capital. Assim, os agentes dotados de habitus complexos em princípio otimizam suas chances de alcançar posições sociais mais elevadas no espaço social. Num sentido inverso, certos grupos de agentes que, em virtude das condições sociais de vida, são levados a ficar a maior parte do dia no trabalho, têm menos oportunidades de atuar em diferentes campos e em conseqüência da estrutura e volume de capital mais simples teriam diminuídas as suas chances de conversão e reconversão de capitais e, portanto, de atuar vantajosamente nos diferentes campos (Brandão; Altmann, 2005).

        Essa plasticidade do habitus é, a nosso ver, um dos principais trunfos das novas elites para garantir a sua distinção, a qual, por sua vez, ancora-se em padrões de vida e consumo normalmente só possíveis às camadas sociais que se encontram nos níveis superiores de renda no Brasil, tal como as representadas pelos sujeitos de nosso survey. Tudo nos leva a crer que Coulangeon (2004) está certo ao sublinhar a necessidade de uma maior atenção para o componente propriamente econômico da persistência das distinções na esfera cultural:

  O desafio teórico que representam as mudanças observadas na estratificação social dos gostos e das práticas culturais obriga-nos à análise da produção dos efeitos de legitimação em um contexto em que as elites perderam o monopólio de prescrição das normas culturais. A sociedade francesa contemporânea (também a brasileira, diríamos) aparece, deste ponto de vista, como uma sociedade na qual as desigualdades sócio-econômicas não são mais tão fortemente sustentadas, como no passado, pelas formas de dominação simbólica (p.81).

Considerações Finais

        As questões que apenas esboçamos neste texto serão objeto de maior atenção na continuidade do programa de pesquisas do SOCED. Tudo leva a crer que apesar da flexibilização das fronteiras entre as culturas de classe (Setton, 2005), ainda persistem traços distintivos de práticas culturais e estilos de vida mantendo e reforçando as hierarquias sociais. O material empírico de que dispomos oferece alguns elementos que permitem supor, também entre nós, que está em curso um recrudescimento das barreiras econômicas que se desdobram em estilos de vida e práticas de consumo material e cultural e que, por sua vez, se reconfiguram em capital simbólico.

        Os agentes estudados evidenciam um repertório de práticas sociais que são o resultado da capacidade de circulação das elites por diferentes campos, onde capitalizam novos recursos para a ampliação da estrutura e volume de capitais com que lutam para manter a “distinção” no espaço social. A combinação tempo livre/recursos pesa sempre a favor daqueles que na divisão social do trabalho têm o privilégio de optar pelo trabalho intelectual.

        A disponibilidade das tecnologias eletrônico-digitais em âmbito privado, caso dos agentes estudados, vem alterando até mesmo o significado de “estar em casa” para esses jovens e suas famílias que podem estar conectados aos amigos e ao mundo pela internet, ou usufruindo um sem número de práticas de lazer cultural. Este mundo disponível a um toque do controle remoto expressa, de forma eloqüente, a separação radical entre as minorias que usufruem de um padrão de vida só acessível aos estratos superiores das hierarquias sociais e são ricamente informadas, como é o caso dos jovens que freqüentam as escolas que fizeram parte do survey do SOCED, e as maiorias que sobrevivem com menos e pouco mais de um salário mínimo e cujas informações dependem da mediação quase que exclusiva da TV e do rádio.




1 O termo ‘elites’ deve ser compreendido no seu sentido plural de variedade de tipos de elites: intelectuais, econômicas, profissionais etc. Nesse sentido, o termo abrange os setores de camadas médias que ao se matricularem nestas escolas passam a integrar as elites escolares.

2 O termo ‘alternativo’, cunhado na década de 70, assim como a adjetivação ‘experimental’ caracterizavam as escolas que se diferenciavam das chamadas escolas tradicionais, normalmente de caráter confessional. O SOCED no decorrer da pesquisa pode perceber algumas resistências à utilização dessa nomenclatura; mesmo assim optou por utilizá-la tendo em vista a presença de uma identidade institucional e pedagógica que pretende se apresentar como distinta em relação ao conjunto de instituições “tradicionais”.

3 Em apenas uma das escolas bilíngües presenciamos uma saída das crianças em que o aparato era ostensivo: alto-falantes chamavam os responsáveis pelas crianças e havia a interrupção do tráfego em uma das faixas da via pública, uma movimentada rua da zona sul da cidade.

4 Recente análise divulgada pelo INEP/MEC com base nos dados do SAEB4 , para a 8a série do ensino fundamental, indicou que apenas 10,23% dos alunos deste nível alcançaram o índice adequado de desempenho para a série em Língua Portuguesa e, em Matemática o estágio adequado foi menor ainda: 2,63%. Ver a respeito: Qualidade da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 8a série do ensino fundamental. Brasília: INEP/MEC, Dezembro de 2003.

5 Em pesquisa anterior sobre a escolarização dos filhos das elites acadêmicas, obtivemos indicadores claros do atraso dos investimentos das mulheres na carreira profissional, mesmo entre as acadêmicas. Os dados indicavam consistentemente a priorização dos investimentos profissionais do casal no pólo masculino. Ver a respeito, Brandão e Lelis (2002).

6 Sobre o papel da mulher na família e na sociedade brasileira consultar o excelente trabalho da equipe da pesquisa, coordenada por Clara Araújo e Celi Scalon, “Gênero, trabalho e família”. Ver a respeito, Araújo e Scalon (2005).

7 Valor do salário mínimo em 1/05/2005. Note-se que os dados referem-se à renda familiar de outubro/novembro de 2002.

8 Fonte: PNAD/IBGE: 2002

9 Todos os trechos de Coulangeon (2004) citados são tradução livre de Zaia Brandão.

10 Para Bourdieu (1995), o termo ‘capital cultural’ pode ser também denominado ‘capital informacional’, mas nesse contexto o utilizamos como um dos componentes da estrutura do capital cultural.

11 A média da população brasileira é de 5,7 anos de escolaridade (PNAD/IBGE, 2000).

12 Locais públicos de acesso à Internet são ainda muito raros, mesmo nos grandes centros urbanos brasileiros, mas o grupo estudado tem acesso à Internet em sua própria residência. Sobre o desdobramento no âmbito cognitivo dos hábitos da internet entre os jovens, consultar: Freitas e Costa (Orgs.) (2005) e Brandão (2005).

13 Neste trabalho, Donnat (2003) abordava: a leitura de livros, os jornais nacionais e regionais, revistas de informação gerais, freqüência a cinemas, a teatros, ou concertos, visita a museus, exposições ou monumentos históricos, freqüência a eventos esportivos, tempo passado diante da televisão, escuta de rádio, discos ou cassetes de música,

14 Os dados da pesquisa de Donnat (2004) indicam que mais de um terço dos 5200 indivíduos com idade acima dos 14 anos interrogados declarou ter recebido de seu meio uma atividade que tem importância em sua vida, uma “paixão”, seja no domínio cultural, lazeres científicos, línguas etc.

15 Os jovens hoje estão muito mais expostos, do que a geração dos pais, a uma maciça e variada oferta de produtos culturais, assim como ao acesso das mais variadas formas de uso do tempo livre.

16 No entanto cabe destacar que 22% dos estudantes investigados afirmaram que acham difícil ler livros até o fim.

17 A Ilíada e A Odisséia estavam sendo trabalhadas em uma das escolas pesquisadas, o que nos faz supor que essas indicações de “preferências” estariam sendo influídas pela representação de “legitimidade” induzida pela escola. Mesmo assim, o acesso destes jovens a essas leituras demarca um diferencial de distinção, mesmo que seja apenas de capital informacional.

18 É importante ressaltar que apesar de a maioria dos questionários ter sido respondida pelas mães, causou surpresa o baixo percentual para as telenovelas, uma vez que estas são um dos produtos culturais mais abrangentes da televisão brasileira e, segundo as pesquisas de opinião, freqüentemente solicitadas por algumas redes de televisão, um item importante do consumo feminino, com altos índices de audiência.

19 O termo ‘americanização‘ refere-se aqui à orientação e à incorporação de práticas e bens da indústria cultural dos EEUU, como os serviços de informação, entretenimento e turismo.

20 Em uma pesquisa anterior do SOCED, sobre os processos de escolarização de filhos das elites acadêmicas, esta questão, com base no material empírico produzido, foi analisada em maior profundidade. Ver a respeito: Brandão e Lelis (2002).

21 Grifo nosso.

22 A partir daqui são apresentados os percentuais da soma de “mais de 4 vezes” com o “3 ou mais vezes”.

23 Baseado, entre outros, em pesquisas de Sergio Miceli e Renato Ortiz.










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