Zaia Brandão e Maria Elena Martinez
O SOCED - Grupo de Pesquisas em Sociologia da Educação da PUC-Rio - vem investigando desde 2002 processos de escolarização em colégios que atendem setores das elites cariocas1 . Articulando abordagens macro e micro-sociais, produziu um material empírico com o qual foi possível esboçar um perfil cultural de alunos, pais e professores dessas escolas. A análise, ainda que em fase preliminar, desse material já permite inferir algumas características de gestão escolar, clima institucional e das condições do trabalho docente que poderão vir a subsidiar políticas educacionais na perspectiva da melhoria da qualidade do ensino.
[...] o contexto, este é também “fabricado” pela reunião dos indivíduos, uma vez que são as características sociais e escolares dos alunos que, em interação com os docentes, contribuem para compor um ambiente de qualidade desigual. Os contextos são os colegas com que se encontram, o “recurso” que eles constituem, o clima que deles decorre nos estabelecimentos e nas classes[...] (Duru-Bellat, 2005, p.25). A análise dos dados comprovou que o capital escolar dessas famílias, como a tabela a seguir indica, é bastante elevado. A importância deste capital fica ainda mais destacada, pois além dos baixos índices de escolarização no Brasil, o nosso sistema de ensino fundamental bastante precário4 . Tabela 1: Nível de escolaridade dos pais
Tabela 2: Distribuição da renda familiar bruta
O crescimento do ecletismo dos gostos e das práticas das classes superiores e a segmentação do meio cultural das classes populares constituem as duas faces de uma mesma realidade, a saber, a dificuldade crescente a equiparar os grupos sociais com repertórios de práticas e de preferências unificadas e homogêneas, no momento mesmo em que as desigualdades econômicas entre estes grupos vão, sobretudo se reforçando. Esta desunificação das culturas de classe, em um contexto de desigualdades crescentes, manifesta a importância específica e muitas vezes negligenciada dos parâmetros puramente econômicos da estratificação social dos estilos de vida. (Coulangeon, 2004, p.76)9
Uma das dimensões mais relevantes na caracterização do grupo estudado, no campo das práticas culturais, é o acesso à informação. A qualidade da vida social nos espaços urbanos, crescentemente complexos das grandes metrópoles – como o Rio de Janeiro – demanda um tipo de conhecimento permanentemente atualizado que articule o nível local aos cenários mundiais/globais. Por outro lado, essa articulação se faz necessária para poder compreender e significar o cotidiano, assim como para desenvolver estratégias a partir da antecipação de cenários futuros de curto prazo.
[...] o capital-informação tende a dividir os homens e mulheres em ricos e pobres em informação, em aqueles que geram valor-informação para o capital e aqueles excluídos do processo de geração, registro, comunicação e consumo de informação-valor. Sociedades que não desenvolvem tecnologias da informação, com todas as relações e agenciamentos sociais nelas envolvidos, tendem não somente a ser sub-informadas em relação aos países capitalistas centrais, como também a erigir, dentro de suas fronteiras, divisões ainda mais fundas entre suas minorias um tanto ricamente informadas e suas grandes maiorias pobremente informadas (Dantas, 2002, p.198). No Brasil, as classes médias e altas, razoavelmente supridas de serviços básicos, passam a demandar, conforme esse autor, serviços interativos que lhes dêem acesso a novos padrões e comportamentos de consumo e entretenimento (televisão por assinatura, compras on line, Internet etc.), geralmente agenciados a partir dos Estados Unidos. A concentração de grandes corporações no gerenciamento de jornais, revistas, editoras de livros, TV aberta ou paga e Internet têm conseqüências importantes sobre os gostos e padrões de consumo dos diferentes estratos da população: As filiais das corporações-redes, bem como as unidades industriais ou financeiras locais nelas articuladas, precisam integrar-se completamente aos sistemas de processamento e transporte de informação das matrizes. Particularmente, no caso do Brasil, pelo menos duas grandes corporações de comunicação social – Globo e Abril –, além de outros grupos industriais e financeiros (Votorantim, Bradesco, Odebrecht etc.), esforçam-se para constituir subfragmentos informacionais locais, articulados aos grandes fragmentos globalizados (Dantas, 2002, p.235).
Cabe destacar que o capital-informação, analisado por Dantas (2002), gera valor-informação com importantes desdobramentos no plano material, podendo ser convertido em capitais econômico e social. Sobre a especificidade do capital cultural do grupo estudado, consideramos que o capital-informação é capital informacional com propriedades de insumo cultural, funcionando, portanto como uma dimensão da estrutura do capital cultural10 . Desse modo, o capital informacional não só define os novos modos de produção e o fluxo dos capitais, como também as formas de vida dos grupos e das famílias.
O fato de que as jovens gerações sejam duas vezes mais numerosas a receber uma paixão no domínio da arte e da cultura - e que dois terços dos parentes que as transmitiram não tenham, eles mesmos, a recebido - dá a medida da difusão do “desejo” de cultura, notadamente no domínio musical, assim como da profunda renovação das condições de sua transmissão. Mas ao mesmo tempo é necessário reconhecer que a cultura continua, em relação aos outros domínios de tempo livre, um lugar onde os mecanismos de reprodução funcionam com maior eficácia e onde as desigualdades,medidas ao início do nível de estudos ou pela origem social, permanecem fortes (Grifos nossos) (Donnat, 2004).
As práticas culturais dos estudantes estudados pelo SOCED indicam resultados bastante consistentes com essas observações de Donnat (2004): os filhos parecem seguir e ampliar15 as experiências dos pais.
Já não são os valores ‘clássicos’ que organizam a vida cultural, mas, o que alguns autores chamam de ‘cultura das saídas’. A arte de viver não toma mais como referência à ‘alta cultura’, mas os tipos de ‘saídas’ realizadas pelos indivíduos – ir ao concerto de rock, a opera, aos restaurantes, ao cinema, ao teatro, viajar de férias. A oposição ‘cultura erudita’ x ‘cultura popular’ é substituída por outra: ‘os que saem muito’ versus ‘os que permanecem em casa’. [...] A mobilidade, característica da vida moderna, torna-se sinal de distinção21 (Ortiz, 2000, p.211).
Entre as atividades culturais preferidas pela ampla maioria dos jovens investigados, destaca-se o cinema (86% afirmam freqüentá-lo mais de 4 vezes por ano e 10% de 3 a 4 vezes por ano, totalizando 96%). Em seguida, em ordem de freqüência vêm os eventos esportivos (58%22 ), os shows de música popular (51%) e o teatro (40,5%). Os dados obtidos sobre freqüência a museus e centros culturais são insuficientes para aquilatar o peso que essa prática tem na vida desses jovens. Verificamos, no entanto, uma baixa freqüência em relação aos eventos eruditos (ópera, ballet e concertos), visto que a opção “nunca freqüenta” foi assinalada por 57% dos respondentes.
A interação do culto com os gostos populares, com a estrutura industrial da produção e circulação de quase todos os bens simbólicos, com padrões empresariais de custo e eficácia, está mudando velozmente os dispositivos organizadores do que agora se entende por “ser culto” na modernidade (Canclini, 1998, p.63).
As rápidas alterações do campo cultural, especialmente nas últimas décadas, aparecem claramente nos perfis destes grupos, exigindo a ampliação das referências teórico-empíricas da pesquisa, inicialmente muito marcadas pelos trabalhos de Bourdieu. Nestor García Canclini (2000), Renato Ortiz (2000) e Maria da Graça Setton (2004), entre nós, foram referências fundamentais para a interpretação das peculiaridades do campo cultural no Brasil e na América Latina. Entre os franceses, as contribuições de Donnat (2003, 2004) e Coulangeon (2004), mais recentemente, permitiram que aprofundássemos nossa reflexão sobre os novos contornos do capital cultural das elites estudadas, assim como para refletir sobre a questão dos novos padrões distintivos das elites. Coulangeon, em especial, foi um autor que encontramos quando este artigo já estava praticamente pronto, e que nos possibilitou articular melhor algumas pontes empírico-teóricas no que se refere às conversões de capitais e, muito especialmente, avaliar o significado atual dos aportes do capital econômico na recriação das distâncias sócio-culturais.
[...] algumas evidências empíricas impõem, em primeiro lugar, romper com a visão de uma classe dominante unificada pela veneração das obras de cultura erudita. Parece, de fato, que hoje em dia, o estilo de vida das classes superiores se caracterizam menos pela legitimidade cultural das preferências e dos hábitos do que pelo ecletismo dos gostos e das práticas (Grifos nossos) (Coulangeon, 2004, p.60).
Cabe lembrar que o conceito de capital cultural, cunhado por Bourdieu, fundamentava-se na hipótese deste novo tipo de capital funcionar como uma espécie de retradução do capital econômico em hierarquias culturais, naquelas sociedades onde o poder e os privilégios não se traduziam mais pelas propriedades e títulos de nobreza. O capital cultural produzia assim um poder de distinção mais refinado, em virtude de sua dupla arbitrariedade: (1) o desconhecimento do caráter de classe das práticas culturais, e (2) o reconhecimento da cultura das elites, como a única legítima.
[...] fragilizam o modelo de a distinção, mas não o desqualificam [...] o ecletismo das classes superiores encarnam, de alguma maneira, a forma contemporânea de uma legitimidade cultural fundada sobre a tolerância estética e a transgressão das fronteiras entre as gerações, os grupos sociais ou as comunidades étnicas, em relação à qual a estratificação social das atitudes permanece muito acentuada (Grifos nossos) (op. cit. p.80).
Este ecletismo também pode ser observado nos dados produzidos pelo nosso survey, o que nos levou a focalizar a estrutura interna do capital cultural dos grupos estudados. Cada vez mais torna-se necessário pensar em práticas culturais que, mais do que pelo conteúdos, se distinguem pelo estilo, intensidade e espaços físicos onde se realizam. É o caso, por exemplo, da freqüência a museus (no Brasil ou no exterior), do aprendizado de línguas estrangeiras (em cursos extra-curriculares ou em escolas bilíngües), dos títulos universitários (em universidades tradicionais ou nas recém criadas com a “democratização” universitária), do acesso às informações e ao mundo digitalizado (via escola e mídia ou através de viagens e dos incontáveis recursos presentes nos quartos e nas casas dos jovens estudados).
A complexificação do habitus decorrente das possibilidades de circulação dos agentes por vários campos, hipotéticamente oferece maiores condições da sua diversificação estrutural, assim como de aumento do volume total do capital. Assim, os agentes dotados de habitus complexos em princípio otimizam suas chances de alcançar posições sociais mais elevadas no espaço social. Num sentido inverso, certos grupos de agentes que, em virtude das condições sociais de vida, são levados a ficar a maior parte do dia no trabalho, têm menos oportunidades de atuar em diferentes campos e em conseqüência da estrutura e volume de capital mais simples teriam diminuídas as suas chances de conversão e reconversão de capitais e, portanto, de atuar vantajosamente nos diferentes campos (Brandão; Altmann, 2005). Essa plasticidade do habitus é, a nosso ver, um dos principais trunfos das novas elites para garantir a sua distinção, a qual, por sua vez, ancora-se em padrões de vida e consumo normalmente só possíveis às camadas sociais que se encontram nos níveis superiores de renda no Brasil, tal como as representadas pelos sujeitos de nosso survey. Tudo nos leva a crer que Coulangeon (2004) está certo ao sublinhar a necessidade de uma maior atenção para o componente propriamente econômico da persistência das distinções na esfera cultural: O desafio teórico que representam as mudanças observadas na estratificação social dos gostos e das práticas culturais obriga-nos à análise da produção dos efeitos de legitimação em um contexto em que as elites perderam o monopólio de prescrição das normas culturais. A sociedade francesa contemporânea (também a brasileira, diríamos) aparece, deste ponto de vista, como uma sociedade na qual as desigualdades sócio-econômicas não são mais tão fortemente sustentadas, como no passado, pelas formas de dominação simbólica (p.81).
Considerações Finais
1 O termo ‘elites’ deve ser compreendido no seu sentido plural de variedade de tipos de elites: intelectuais, econômicas, profissionais etc. Nesse sentido, o termo abrange os setores de camadas médias que ao se matricularem nestas escolas passam a integrar as elites escolares. 2 O termo ‘alternativo’, cunhado na década de 70, assim como a adjetivação ‘experimental’ caracterizavam as escolas que se diferenciavam das chamadas escolas tradicionais, normalmente de caráter confessional. O SOCED no decorrer da pesquisa pode perceber algumas resistências à utilização dessa nomenclatura; mesmo assim optou por utilizá-la tendo em vista a presença de uma identidade institucional e pedagógica que pretende se apresentar como distinta em relação ao conjunto de instituições “tradicionais”. 3 Em apenas uma das escolas bilíngües presenciamos uma saída das crianças em que o aparato era ostensivo: alto-falantes chamavam os responsáveis pelas crianças e havia a interrupção do tráfego em uma das faixas da via pública, uma movimentada rua da zona sul da cidade. 4 Recente análise divulgada pelo INEP/MEC com base nos dados do SAEB4 , para a 8a série do ensino fundamental, indicou que apenas 10,23% dos alunos deste nível alcançaram o índice adequado de desempenho para a série em Língua Portuguesa e, em Matemática o estágio adequado foi menor ainda: 2,63%. Ver a respeito: Qualidade da Educação: uma nova leitura do desempenho dos estudantes da 8a série do ensino fundamental. Brasília: INEP/MEC, Dezembro de 2003. 5 Em pesquisa anterior sobre a escolarização dos filhos das elites acadêmicas, obtivemos indicadores claros do atraso dos investimentos das mulheres na carreira profissional, mesmo entre as acadêmicas. Os dados indicavam consistentemente a priorização dos investimentos profissionais do casal no pólo masculino. Ver a respeito, Brandão e Lelis (2002). 6 Sobre o papel da mulher na família e na sociedade brasileira consultar o excelente trabalho da equipe da pesquisa, coordenada por Clara Araújo e Celi Scalon, “Gênero, trabalho e família”. Ver a respeito, Araújo e Scalon (2005). 7 Valor do salário mínimo em 1/05/2005. Note-se que os dados referem-se à renda familiar de outubro/novembro de 2002. 8 Fonte: PNAD/IBGE: 2002 9 Todos os trechos de Coulangeon (2004) citados são tradução livre de Zaia Brandão. 10 Para Bourdieu (1995), o termo ‘capital cultural’ pode ser também denominado ‘capital informacional’, mas nesse contexto o utilizamos como um dos componentes da estrutura do capital cultural. 11 A média da população brasileira é de 5,7 anos de escolaridade (PNAD/IBGE, 2000). 12 Locais públicos de acesso à Internet são ainda muito raros, mesmo nos grandes centros urbanos brasileiros, mas o grupo estudado tem acesso à Internet em sua própria residência. Sobre o desdobramento no âmbito cognitivo dos hábitos da internet entre os jovens, consultar: Freitas e Costa (Orgs.) (2005) e Brandão (2005). 13 Neste trabalho, Donnat (2003) abordava: a leitura de livros, os jornais nacionais e regionais, revistas de informação gerais, freqüência a cinemas, a teatros, ou concertos, visita a museus, exposições ou monumentos históricos, freqüência a eventos esportivos, tempo passado diante da televisão, escuta de rádio, discos ou cassetes de música, 14 Os dados da pesquisa de Donnat (2004) indicam que mais de um terço dos 5200 indivíduos com idade acima dos 14 anos interrogados declarou ter recebido de seu meio uma atividade que tem importância em sua vida, uma “paixão”, seja no domínio cultural, lazeres científicos, línguas etc. 15 Os jovens hoje estão muito mais expostos, do que a geração dos pais, a uma maciça e variada oferta de produtos culturais, assim como ao acesso das mais variadas formas de uso do tempo livre. 17 A Ilíada e A Odisséia estavam sendo trabalhadas em uma das escolas pesquisadas, o que nos faz supor que essas indicações de “preferências” estariam sendo influídas pela representação de “legitimidade” induzida pela escola. Mesmo assim, o acesso destes jovens a essas leituras demarca um diferencial de distinção, mesmo que seja apenas de capital informacional. 18 É importante ressaltar que apesar de a maioria dos questionários ter sido respondida pelas mães, causou surpresa o baixo percentual para as telenovelas, uma vez que estas são um dos produtos culturais mais abrangentes da televisão brasileira e, segundo as pesquisas de opinião, freqüentemente solicitadas por algumas redes de televisão, um item importante do consumo feminino, com altos índices de audiência. 19 O termo ‘americanização‘ refere-se aqui à orientação e à incorporação de práticas e bens da indústria cultural dos EEUU, como os serviços de informação, entretenimento e turismo. 20 Em uma pesquisa anterior do SOCED, sobre os processos de escolarização de filhos das elites acadêmicas, esta questão, com base no material empírico produzido, foi analisada em maior profundidade. Ver a respeito: Brandão e Lelis (2002). 21 Grifo nosso. 22 A partir daqui são apresentados os percentuais da soma de “mais de 4 vezes” com o “3 ou mais vezes”. 23 Baseado, entre outros, em pesquisas de Sergio Miceli e Renato Ortiz.
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